A matéria é do O Globo:
Qual teria sido, afinal, a “terra à vista” anunciada por Pedro Álvares Cabral ao chegar, pela primeira vez, àquela que se tornaria a costa brasileira? Os livros de História são assertivos: a nau portuguesa desembarcou onde hoje fica o Sul da Bahia, próximo a Porto Seguro. Mas a resposta pode não ser assim tão unânime. Uma nova pesquisa publicada em setembro no Journal of Navigation, da Universidade de Cambridge, sustenta que a frota deu as caras, na verdade, cerca de 1.800 quilômetros acima, no litoral do Rio Grande do Norte, entre as atuais cidades de Rio do Fogo, São Miguel do Gostoso e Pedra Grande.
Assinado pelos físicos Carlos Chesman, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Claudio Furtado, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o estudo cruza os dados numéricos da carta de Pero Vaz de Caminha com simulações de ventos, correntes marítimas, profundidade do mar e relevo. A conclusão dos autores é que as descrições feitas pelo escrivão de Cabral se ajustam melhor à costa potiguar do que à baiana.
"Nós catalogamos todos os números da carta de Caminha e começamos a comparar com o que a física pode dizer sobre ventos, correntes e rotas de navegação naquele período", descreve Chesman.
Os pesquisadores refizeram, em computador, a trajetória da esquadra entre as ilhas de Cabo Verde, de onde ela partiu em 23 de março de 1500, e o primeiro avistamento de terra, em 21 de abril. No documento, Caminha afirma que foram percorridos cerca de 4 mil quilômetros até avistar um “monte mui alto e redondo” e, no dia seguinte, outras elevações ao sul, a uma distância de 30 a 40 quilômetros da costa.
Segundo Furtado, quando essas informações são inseridas em simulações que levam em conta a rotação da Terra, as correntes oceânicas e os ventos dominantes no Atlântico, a rota mais provável desenha um “S” que leva os navios ao Nordeste brasileiro. Eles também buscaram reproduzir a situação da frota de Cabral em expedições pelo Rio Grande do Norte.
No estudo, os físicos apontam que o “grande monte” descrito por Caminha seria o atual Serra Verde, em João Câmara, no interior potiguar, e não o Monte Pascoal, em Porto Seguro, como consagrou-se. Quando os físicos fizeram medições de profundidade considerando a distância mencionada por Caminha e compararam fotos com as imagens de satélite em 3D, o resultado mais adequado obtido foi, de novo, o Rio Grande do Norte.
Outro ponto considerado decisivo é a topografia da elevação. O Monte Pascoal baiano tem a forma de um pico pontiagudo. Já nas fotos feitas pela equipe no litoral potiguar, Serra Verde aparece como uma estrutura mais larga, arredondada, cercada de outras formações mais baixas ao sul.
"A descrição do Caminha combina muito mais com o monte daqui", diz Furtado.
A pesquisa também confrontou outra passagem da carta: a profundidade do mar no ponto onde os navios estavam ancorados, registrada por Caminha em cerca de 55 metros. O estudo compara esses números com dados batimétricos atuais do litoral da Bahia e do Rio Grande do Norte e conclui que o ajuste também encaixa-se melhor à costa potiguar.
A partir dessa primeira ancoragem, a missiva relata que Nicolau Coelho foi enviado em um batel para o primeiro contato com indígenas. Os físicos defendem que a cena ocorreu na Praia de Zumbi, em Rio do Fogo. No dia seguinte, o local de um segundo desembarque foi associado pelos pesquisadores à região da Praia do Marco, entre São Miguel do Gostoso e Pedra Grande, onde há um marco português datado de 1501.
A hipótese de um primeiro contato no Rio Grande do Norte não é inédita. Desde o século passado, intelectuais potiguares como Luís da Câmara Cascudo e, mais recentemente, o historiador Lenine Pinto defenderam a tese de que a esquadra de Cabral teria chegado primeiro por ali. O novo estudo, segundo os autores, oferece um lastro físico e matemático a essas interpretações.
"A gente brinca que o texto de Caminha é “a carta que ninguém leu”. Ela foi lida do ponto de vista da narrativa histórica, mas muitos dos dados numéricos, de distância, profundidade, tempo de navegação, ficaram pouco explorados", opina Furtado.
Outros especialistas em Brasil colonial, contudo, pregam cautela e criticam a forma como as fontes foram usadas. Autor de “Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil” e curador da exposição dos 500 anos do país na Biblioteca Nacional, o pesquisador Paulo Roberto Pereira sustenta que não se pode reconstruir a rota de Cabral apenas com base na carta de Pero Vaz de Caminha.
"Sobre o descobrimento do Brasil, só existem três documentos de quem estava lá: a carta de Caminha, a carta de Mestre João e a carta do piloto anônimo. Não se fala de dia, hora e lugar da chegada sem olhar os três. Caminha é essencial, mas ele era escrivão e contador. Quem faz medições é Mestre João, matemático e físico, o primeiro a descrever o Cruzeiro do Sul. Se querem defender uma nova rota usando a física, precisam confrontar também os dados dele".
Escritor e jornalista especializado em história colonial, Eduardo Bueno também defende prudência. Ele considera os modelos físicos e computacionais ferramentas importantes, mas diz que, por ora, não vê motivos para abandonar a hipótese tradicional:
"A carta de Caminha é maravilhosa do ponto de vista literário, mas não foi escrita para registrar a navegação. Não tem a precisão técnica necessária para reconstituir a rota. Por isso, sigo vendo mais solidez na hipótese usual".