O futebol sempre foi terreno fértil para superstições e um campo no qual as derrotas, muitas vezes, buscam explicação além das quatro linhas. Em Avellaneda, uma lenda tenta dar sentido ao período de infortúnio do Racing Club. Depois de anos no topo do futebol argentino, o adversário do Flamengo na semifinal da Libertadores passou décadas sem conquistas. Esta é a história da suposta maldição que torcedores rivais lançaram sobre "La Academia" no século passado.
Racing e Flamengo disputam o jogo de volta da semifinal da Libertadores nesta quarta-feira, às 21h30, no Cilindro, em Avellaneda. O Fla venceu a partida de ida por 1 a 0, no Maracanã.
No início do Século 20, o Racing era sinônimo de grandeza. Chamado de “La Academia” por sua excelência e vitórias em série, o clube conquistou sete títulos nacionais consecutivos entre 1913 e 1919, sendo cinco deles de forma invicta. Em 1967, voltou ao topo ao vencer o campeão europeu Celtic (Escócia) e se tornar o primeiro time argentino a conquistar a Copa Intercontinental.
— Era uma equipe que havia ficado 39 partidas invicta entre 1965 e 1966, que tinha se consagrado campeã da Copa Libertadores em 1967. O futuro do Racing Club parecia extremamente promissor. Mas, como em toda boa história de rivalidade, o sucesso da Academia despertou algo mais sombrio do outro lado da cidade. Em Avellaneda, a glória de um sempre ecoa como dor para o outro — explicou ao ge o escritor argentino Carlos Aira.
É nesse ponto que a lenda começa. O Independiente, maior rival do Racing, não tinha conseguido vencer a Copa Intercontinental em 1965 e 1966, perdendo ambas as vezes para a Inter de Milão (Itália). Conta-se que os rivais, guiados por uma bruxa local e com a ajuda de um vigia noturno do Cilindro, que torcia pelo Independiente, invadiram o estádio para enterrar sete gatos mortos.
Seis foram colocados sob um dos gols, e o sétimo em um ponto secreto, com o intuito de amaldiçoar o rival e inverter o sucesso. Coincidência ou não, deu certo. O adversário do Flamengo nesta quarta passou a viver anos sombrios.
— A questão é que, acredite se quiser, desde aquele 4 de novembro de 1967, para o Racing Club, tudo passou a ser uma luta constante. A década de 1970 foi péssima, tanto no aspecto esportivo quanto no institucional. Em dezembro de 1983, o clube sofreu o rebaixamento para a segunda divisão, enquanto, ao mesmo tempo, o Independiente vivia seu auge: foi campeão da Copa Libertadores da América quatro vezes consecutivas, entre 1972 e 1975, e campeão intercontinental em 1973, em Roma, derrotando a Juventus — contou Carlos Aira.
O Racing entrou em um ciclo de fracassos que duraria 35 anos. Nenhum título, crises financeiras e até o rebaixamento inédito em 1983, ironicamente decretado em um clássico contra o Independiente.
Há histórias diversas sobre a suposta maldição. Entre elas uma que o técnico Juan Carlos Lorenzo mandou desenterrar os gatos em 1980, mas apenas seis foram encontrados. Há quem diga que entre tentativas de quebrar o feitiço esteve um ritual de purificação, com o enterro de sapos, símbolo de renovação, nos locais escavados. A lenda alimentou o imaginário do torcedor do Racing por anos.
No começo de 1998, a lenda dos gatos enterrados começou a ganhar força novamente, e o clube decidiu recorrer à fé. Cerca de 15 mil torcedores caminharam em procissão da Catedral da Plaza de Mayo até o estádio, levando uma imagem da Virgem de Luján, padroeira da Argentina. No gramado, o padre Jorge Della Barca celebrou uma missa e jogou água benta, em um ato que o presidente Daniel Lalín chamou de “um gesto de fé, não um exorcismo”. Na ocasião, o padre disse que “a melhor bênção era simplesmente jogar bem futebol”.
— A própria diretoria do Racing Club decidiu realizar o que alguns diziam ser um exorcismo, embora oficialmente tenha sido chamada de homilia — reforçou o jornalista argentino.
A cerimônia não trouxe resultados imediatos. Um ano depois, o Racing entrou com pedido de falência. Das cinzas, porém, nasceria a redenção. Em 2000, o técnico Reinaldo “Mostaza” Merlo assumiu o time. Tático e supersticioso, ele acreditava em rituais para atrair sorte e teria insistido para que o sétimo gato fosse finalmente encontrado.
Quando o estádio passou por reformas, uma área cimentada atrás do gol foi demolida e escavada, e ali, contam, o último gato teria sido descoberto. Verdade ou mito, o Racing voltou a vencer. Em 27 de dezembro de 2001, depois de 35 anos de seca, o clube foi campeão argentino.
— O que é certo é que, naquela época, havia algo simbólico ligado ao Racing: a 200 metros do estádio da Academia, existia uma pizzaria muito famosa chamada La Mufa, que significa "má sorte". Curiosamente, essa pizzaria também deixou de existir em 2001, justamente no ano em que o Racing se consagrou campeão após 35 anos de jejum — concluiu Carlos Aira.
Os céticos lembram que a história muda conforme quem a conta. Ninguém sabe ao certo quando os gatos foram enterrados, quem ordenou a escavação ou se algo realmente foi encontrado. Mas o fascínio persiste, a lenda ainda é lembrada, e o “gol amaldiçoado” estará lá nesta quarta-feira para o Flamengo tentar sua sorte.